Há
algum tempo a historiografia abandonou a crença de que tenha existido,
durante a Época Moderna, um efetivo “poder absoluto” exercido pelos
reis. Se associarmos aquele tempo que se estende entre os séculos XV e
XVIII – quando se consolidaram os Estados com seus corpos burocráticos e
seus exércitos permanentes – à centralização política irresistível que
em geral deduzimos elo tendo “absolutismo”, estaremos muito longe ele
uma ideia razoável sobre as formas de ação política dos nossos
antepassados coloniais.
Se nem mesmo
Luís XIV da França, o Rei Sol, tinha todo o poder para si de forma
incontestável, o que garantiria o domínio inegociável dos monarcas de
Portugal sobre seus súditos no ultramar?
Do início ao fim do penado
colonial, o que se viu foi uma contínua busca por manutenção de
soberania – na América portuguesa, do século XVI ao XIX, de norte a sul,
colonizadores, colonizados e agentes do poder real foram protagonistas
de uma sucesso de conflitos que deixam bem clara a distância que
separava o desejo metropolitano e a realidade do exercício do poder na
colônia.
Desde os tempos mais
primevos, a soberania portuguesa precisou se entender com as
necessidades locais criadas pelo esforço de colonização. Um caso
evidente de desordem interna a colocar em risco a ação do poder
metropolitano aconteceu quando Pero do Campo Tourinho, donatário de
Porto Seguro a partir de 1534, caiu na malha da Inquisição.
Disposto
a auferir a qualquer custo os prometidos lucros que atraíam seus
conterrâneos para o além-mar, espremido por grupos indígenas e piratas
franceses, Tourinho arregimentou inimigos e colocou em risco o edifício
colonial logo durante o início da sua construção. Tido como desbocado,
violento e imoral, ao exercer o que acreditava serem as suas
prerrogativas, ele instaurou a cizânia entre os colonos. Nos documentos
da Inquisição, testemunhas – ou conspiradores – desfiaram um longo
rosário de atitudes que demonstravam o quanto Tourinho estava disposto a
renunciar às regras que imperavam no governo português na época para
atender aos seus interesses: teria dito que trabalhava sem a ajuda de
Deus, acusado o papa de agir por dinheiro, ofendido autoridades
clericais, espancado um padre. Mais do que demonstrações de
anticlericalismo, o donatário acabou despertando a fúria dos colonos
contra a sua autoridade aparentemente sem limites, inclusive a de um dos
seus filhos, André do Campo, um dos conspiradores.
Tourinho foi preso e enviado para Lisboa, onde enfrentou um processo por
blasfêmia. Em depoimento prestado em 1547, relatou as dificuldades que
enfrentou para dar início à colonização e chamou seus acusadores de
preguiçosos e corruptos. Apesar de inocentado da acusação, Tourinho foi
proibido de retornar ao Brasil – na prática, uma vitória dos
conspiradores.
Ao longo do século XVI
e no início do seguinte, ficaria cada vez mais clara para as
autoridades metropolitanas a necessidade de um controle mais efetivo
sobre essas populações progressivamente indomáveis que se formavam ao
sabor das necessidades e à margem da ordem nas colônias – a posse dos
territórios não estava se convertendo em vantagem econômica para as
cabeças coroadas na Europa.
Por outro
lado, seria justamente na virada do século XVI para o XVII que os
colonos de origem ibérica, agora em número maior e com interesses cada
vez mais enraizados, desenvolveriam uma percepção muito particular da
vida política.
Os acontecimentos europeus, assim como toda a discussão
que se travou por conta da União Ibérica entre 1580 e 1640, finalizada
com uma rebelião contra o rei espanhol, motivaram um longo e complexo
debate sobre a origem e a finalidade do poder político, recuperando
teses medievais sobre a relação entre príncipes e súditos.
Os
jesuítas ibéricos, envolvidos até o pescoço na vida intelectual e no
ensino em Portugal, na Espanha e em seus domínios, expunham suas teses
que, ao fim, chegaram a difundir a ideia de que os súditos tinham o
direito de se levantar contra as injustiças dos governantes – a palavra
“tirania” se tornaria muito comum nos mais variados protestos que
tiveram o espaço colonial como palco.
A
contradição básica, por fim, se estabeleceu. A Coroa portuguesa
precisava entrar no circuito do “excedente colonial” (o lucro com a
exploração dos produtos americanos), fosse estabelecendo privilégios
comerciais, regulando preços, fosse exercendo pressão fiscal; os
súditos, por sua vez, enfrentavam as agruras da vida na América, faziam
empréstimos, entravam em operações de risco e esperavam receber de uma
longínqua Coroa o reconhecimento por seus esforços e mesmo o respeito
pelo “bem comum” na colônia.
A partir
do século XVII, essas tensões assumiram diversas formas, raramente em
um conflito explícito contra a soberania portuguesa, quase sempre
preservada (pelo menos no discurso). O que se via, em geral, além das
revoltas ou outras formas de resistência dos escravos contra a sua
condição, eram protestos de colonos contra o exercício do poder por
parte dos operadores do poder régio na colônia. A fórmula “viva o rei,
morra o mau governo” foi a que predominou no período, reiterando a ordem
monárquica, mas lembrando os anseios de grupos locais.
Mais
do que mero reflexo das relações metrópole-colônia, as populações da
América portuguesa eram formações complexas e dinâmicas, com disputas no
seu seio, tensões econômicas, religiosas e políticas. As diversas
formas de coexistência entre os interesses internos e externos tiveram
que se ajustar e reajustar durante um período de quase 300 anos, entre
grupos às vezes muito dependentes uns dos outros e outras vezes isolados
ou opostos entre si. Não faltam exemplos de ocasiões nas quais
habitantes do Brasil antigo se levantaram, não poucas vezes de forma
violenta, por aquilo que julgavam ser certo.
Este artigo foi publicado também na Revista História da Biblioteca Nacional, Edição de Dezembro de 2013.
Texto de Rodrigo Elias


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